segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Algures sem gravidade


Num daqueles momentos em que a embriaguez da gula se sobrepõe a tudo, velando o discernimento do que se pode e deve comer, via-se paralisada, flutuando no vazio, onde como que no espaço, os pensamentos passavam por si soltos, livres, como peças de puzzle idênticas umas às outras mas com um único encaixe.
Passava-lhe a ideia de ligar aquela pessoa que a tinha tentado contactar pela hora do almoço, mas o seu corpo e mente não reagiam ao estímulo de tentar ligar de volta.
O trabalho, as contas, as datas, os clientes, as horas, o salário, as obrigações, tudo peças miudinhas que flutuavam desordenadamente nos seus pensamentos, obstruindo a passagem de ideias maiores, escrever, pintar, criar, passear, planear momentos prazerosos, namorar, fazer planos a prazo. Sentia-se subterrada em problemas que não lhe pertenciam, mas que assumia como tal.
Tinha de ultrapassar isso, treinar a capacidade de dizer basta sem ferir susceptibilidades. Como faze-lo ainda estava longe de o saber. Tentava apanhar as peças, os pensamentos, arrumando por categoria, por ordem de prioridade, mas aquilo que tinha de ser não era bem o que esperava que fosse.
Aquelas pequenas peças do puzzle, ocupavam-na tanto em tentar arruma-las que não lhe deixavam tempo para fazer o que mais a motivava.
Perguntava-se naquele mesmo momento, há quanto tempo não ouvia música?
Ultimamente fazia do ruído em volta o som ambiente como se de uma música se tratasse. O som dos minutos do relógio do qual nem sabia se as horas estavam certas, o choro do bebé do apartamento de cima, o som de um carro que passava na rua… tudo menos aquelas melodias que a faziam sonhar, que a emocionavam, ou embalavam.
Estava perdida, flutuava no vazio. Continuava a rodopiar num espaço sem gravidade entre as peças de puzzle, grandes de pequenas, sem ordem, sem peso, sem chão.
Flutuava apenas, sem destino, sem tempo, sem metas, débil numa luta entre o discernimento e a embriaguez da gula e do não fazer nada.