Num daqueles
momentos em que a embriaguez da gula se sobrepõe a tudo, velando o discernimento
do que se pode e deve comer, via-se paralisada, flutuando no vazio, onde como
que no espaço, os pensamentos passavam por si soltos, livres, como peças de
puzzle idênticas umas às outras mas com um único encaixe.
Passava-lhe
a ideia de ligar aquela pessoa que a tinha tentado contactar pela hora do
almoço, mas o seu corpo e mente não reagiam ao estímulo de tentar ligar de
volta.
O trabalho,
as contas, as datas, os clientes, as horas, o salário, as obrigações, tudo peças
miudinhas que flutuavam desordenadamente nos seus pensamentos, obstruindo a
passagem de ideias maiores, escrever, pintar, criar, passear, planear momentos
prazerosos, namorar, fazer planos a prazo. Sentia-se subterrada em problemas que
não lhe pertenciam, mas que assumia como tal.
Tinha de
ultrapassar isso, treinar a capacidade de dizer basta sem ferir
susceptibilidades. Como faze-lo ainda estava longe de o saber. Tentava apanhar
as peças, os pensamentos, arrumando por categoria, por ordem de prioridade, mas
aquilo que tinha de ser não era bem o que esperava que fosse.
Aquelas
pequenas peças do puzzle, ocupavam-na tanto em tentar arruma-las que não lhe
deixavam tempo para fazer o que mais a motivava.
Perguntava-se
naquele mesmo momento, há quanto tempo não ouvia música?
Ultimamente
fazia do ruído em volta o som ambiente como se de uma música se tratasse. O som
dos minutos do relógio do qual nem sabia se as horas estavam certas, o choro do
bebé do apartamento de cima, o som de um carro que passava na rua… tudo menos
aquelas melodias que a faziam sonhar, que a emocionavam, ou embalavam.
Estava
perdida, flutuava no vazio. Continuava a rodopiar num espaço sem gravidade entre
as peças de puzzle, grandes de pequenas, sem ordem, sem peso, sem chão.
Flutuava
apenas, sem destino, sem tempo, sem metas, débil numa luta entre o discernimento
e a embriaguez da gula e do não fazer nada.